terça-feira, novembro 29

O Meu Fado

Não me recordo a primeira vez que ouvi o som das guitarras e o poder da voz dos fadistas. Mas sei quando comecei a senti-los, quando as notas nos dedos ecoaram na sala e a letra se tornou num mundo, com gente dentro.

Nunca se ouviu fado em casa nem se compravam cd's ou cassetes deste género, apesar da Mãe sempre ter gostado muito.
Eu não percebia. Para mim, na altura, era simplesmente música. Achava monótono e aborrecido embora sempre tivesse ouvido: "quem não gosta de fado não pode ser bom português".
Até ao dia.

Os meus tios resolveram mudar de vida e abrir um restaurante com comida portuguesa bem feita, pratos bem servidos e um ambiente íntimo, elegante e requintado.
O estabelecimento era familiar. O Tio era o cozinheiro, a Tia a doceira/pasteleira, os Filhos os empregados de mesa e o Amigo do tempo da guerra estava responsável pela copa.
Aquele lugar tinha um charme intemporal, com cortinados drapeados em cetim, guardanapos de pano, talheres prateados pesados, brilhantes e uma decoração feita com mimo e atenção, de peças que a Tia pintava e expunha na sala.
Lembro-me de ter passado muitos dos meus verões lá em casa enquanto criança e adolescente. Sentava-me numa cadeira, perto da máquina registadora e absorvia as pessoas presentes. A comer, a deliciarem-se, a rir, a falar, a beber, e gostava.
Decidiu-se que aos sábados haveria Fado ao Vivo, para chamar a atenção dos turistas. Com a agenda cheia de reservas para esta nova noite temática, o meu primo não conseguia coordenar uma sala sozinho. E eu, com 19/20 anos aceitei o convite de me tornar empregada de mesa, a sua assistente. 
Este foi o início da minha relação com o Fado.

Trabalhava-se com 4 fadistas: a três era atribuído um sábado de cada semana e um era residente com o Fado de Coimbra. Duas vozes de senhora e duas de senhor, todos fielmente acompanhados pelos músicos, a sua entourage.
Por norma, chegavam 1 hora antes de atuar. Jantávam na mesa mais discreta e recôndida do restaurante, com um jarrinho de vinho tinto e era esse o local onde pousavam os instrumentos e a voz nos intervalos.

Apercebi-me que, apesar de não haver palco, aquilo era um espetáculo, tratado com a magnificência exigida, de todos.
Vestiam-se a rigor para cantar o Fado. Os músicos vinham de fato escuro e gravata e elas com os seus vestidos negros armados, com desenhos de lantejolas, as jóias mais vistosas, o xaile colorido colocado sob os ombros, sempre com franjas, que se entrelaçavam nos dedos aquando da interpretação. A nós, cabia ter tudo organizado antes e depois da performance. Por respeito, limitávamos ao máximo a nossa circulação na sala, o toque de pratos, dos copos, dos talheres dado que todos obedecíamos à lei "silêncio que se vai cantar o Fado."
Os clientes habituais já conheciam o sinal de início da representação musical: o apagar das luzes brancas e o acender do único feixe vermelho que incidia sob os músicos e fadista, tornando-os nas estrelas da noite, iluminados pelo calor da cor e das velas nas mesas.

Lembro-me de observar os estrangeiros embevecidos a olhar e a sentir. A comida no prato podia ficar fria, porque a atenção era direcionada àquele conjunto que cantava a cultura portuguesa. Mesmo sem perceber uma palavra, entendiam o sentimento. Mesmo tendo sido a primeira visita no nosso país, entregavam-se ao compasso da guitarra e da viola e à interpretação do fadista. E era delicioso ver e ouvir.

Durante este período, ouvi muitos fados, muitas cantigas, muita destreza nos dedos que corriam a madeira cima e baixo, esquerda e direita antes de saber apreciar. Mas ao Fado, rendemo-nos sempre, independente do tempo que demore.

Depois da panóplia, posso afirmar que a minha preferência cai no Fado corrido, alegre, mais ritmado, propício à interação, em que é possível aos espetadores acompanhar a fadista e cantar com ela o refrão. E, perdoem-me todos os excelentes fadistas homens, mas o Fado cantado por uma mulher tem outro sabor.
A estucada de sedução veio nas palavras (sempre as palavras!) com a musicalidade das letras, dos poemas, dos versos, que brincam, que choram, que divagam, que são a essência de uma melodia.
O Fado é visto como triste e melacólico, saudoso e solitário, mas não para mim. Traz-me memórias bonitas e lembranças muito queridas. O Fado canta a Vida, composta por momentos de infelicidade, de desgosto, de dúvida, de arrependimento. Mas também tem paixões, alegrias, vitórias e união.
Assim, e em jeito de conclusão, fica o video do meu fado favorito numa das mais belas performances. Aqui é transparente a diferença entre contar uma história e cantá-la; e a universalidade do nosso Fado.


Fico radiante por termos ganho. 
Apesar de não sabermos para onde vamos, fomos reconhecidos por aquilo que fomos, pelo que somos e faz-me sentir especial.
M

1 comentário:

Leila Krüger disse...

Não conheço muito de música portuguesa, mas um pouco. E adoro a culinária portuguesa! Sou do Brasil!

Tô seguindo flor!

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Beijos!